quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Quanto custa a sua fé?

Na sessão do descarrego, fiéis acreditam na cura através da aliança com Deus, mas ela tem um preço: 10% daquilo que receberem

Uma lenta canção instrumental acolhe os fiéis que aos poucos começam a formar um modesto público pelos 1.400 assentos do amplo e luminoso edifício. Pessoas de todos os tipos começam a chegar: elas são magras, gordas, altas, baixas, de pele clara e escura, de diferentes classes sociais e algumas acompanhadas de crianças pequenas. Um evento muito peculiar está para começar. E cada um está ali por um único motivo: livrar-se de todos os males que possam afligir suas vidas.

No altar, alguns vasos com vinho e o óleo que representa o Espírito Santo chamam a atenção. O óleo, que tem um cheiro um pouco desagradável, é uma espécie de “condutor” para a cura – ele é passado nas palmas das mãos, que são levadas à cabeça ou à parte do corpo que está doente. Atrás do púlpito, a fotografia de uma paisagem que compõe a decoração tem um significado: pedras e plantas verdes envolvem a água que cai em cascata – a água representa o batismo. O púlpito é comum, de madeira, com uma cruz talhada na parte da frente. É neste local que o Pastor Edson Nascimento dos Prazeres, 46 anos, passa a maior parte do tempo lendo os dizeres da Bíblia, ou transmitindo suas ideias, suas crenças. Assim que ele sobe ao altar, todos se levantam.

– Diga “graças a Deus”. Bote a mão no coração, que nós vamos falar com Ele. – Diz o Pastor, que logo dá início à primeira canção de louvor de maneira desafinada, com ajuda do tecladista: “Seguuura na mão de Deeeus... e vaaai.”

A moeda da fé

Terminada a canção de louvor, o pastor Edson começa a falar de dinheiro, como numa aula de matemática financeira (os sermões parecem ser decorados como um texto, um roteiro, pois pouco se diferenciam conforme a cerimônia):

– Uma das coisas que baseiam nossa fidelidade com Deus é o dízimo. Independentemente de quanto você receber, 10% deve ser devolvido a Jesus. Se você ganha R$ 10 mil, R$ mil é de Jesus, se você ganha R$ 500, R$ 50 é de Jesus. – O dízimo é coletado em envelopes. O fiel ainda pode fazer uma oferta de quanto quiser. É através da oferta que ele pode reafirmar sua aliança com Deus.

A servente escolar Nereusa Borges, 48, diz que os pastores da Congregação Cristã no Brasil ensinam que só se deve dar o dízimo se sentir-se à vontade. “Eu acredito fielmente no que o pastor prega porque tudo o que ele diz está na Bíblia e nossa igreja segue somente a palavra Deus, aí não tem como duvidar”, diz Nereusa. Assim como a servente escolar, muitos creem em pastores como Edson, que afirmam: “para ser feliz, sacrifícios são necessários”. E Edson sabe bem o que é isso. Antes de pregar na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Edson era alcoólatra, como o pai: “Meu pai morreu na cachaça, usava lança-perfume, vivia nas drogas”. De acordo com ele, a igreja é a salvação, a cura para doenças do corpo, da mente e da alma, como o câncer, a depressão, as visões e até mesmo a AIDS. 

Começa, então, a oração pelos dizimistas. “Que Deus possa fazer coisas maravilhosas pelos dizimistas de Itajaí”, diz Edson. Para ele, Deus é alguém muito rico, contudo, não se deve pensar que para seguir à palavra, o fiel deve abrir mão de ter posses, bens materiais.

– Essa história de que Jesus foi simples, humilde, de que a pessoa tem que viver e não pode ter riquezas, não pode adquirir bens, isso é história para boi dormir. Aliás, nem boi está dormindo mais com essa história. – Edson eleva o tom da voz e pergunta aos fiéis:

– Deus quer que você tenha uma vida abençoada. Amém? Ele quer que você ande rasgado? Que você viva mal? Venha a se alimentar mal? Se vista mal? Não, Ele quer que você tenha o melhor, por isso está escrito: “Comereis o melhor desta terra e vos fartareis”. Então, se você quer comer desta terra, venha fazer uma parceria com Deus, venha tornar-se dizimista.

Edson diz que o aluguel pago pelo local onde acontecem as cerimônias, que fica na rua Heitor Liberato (popularmente conhecida como rua Silva) em Itajaí, é de R$17 mil, mas esse valor não sai do bolso dos fiéis, pois não é possível arrecadar tanto. No entanto, não importa a posição financeira dos frequentadores – a maioria confia na palavra do pastor e não hesita em contribuir, embora muitos sequer saibam o que é feito posteriormente com o dinheiro. Jaqueline Boaventura Delfim, 26, é fiel da Assembleia de Deus e há oito anos deposita todo mês R$ 140 nos cofres da igreja. Apesar de não saber o que é feito com o dízimo, a zeladora não se arrepende: “Eu não sei para onde vai esse dinheiro, só penso que Deus está vendo: minha parte eu faço.”

O descarrego

“É hora de exterminar todos os males da família: doenças, drogas, amantes, brigas e o cigarro, que é a chupeta do diabo...”, diz o pastor Edson, dando início à parte principal da cerimônia: a sessão do descarrego. Todos se aproximam do altar e o óleo malcheiroso, símbolo do Espírito Santo, é passado nas mãos de cada um. O pastor ordena: “bote suas mãos no local da enfermidade, ou então na cabeça”. Como num ritual de exorcismo, dois pastores se aproximam e começam a expulsar os supostos demônios dos fiéis, apoiando a mão em suas cabeças e orando em um tom de voz quase ensurdecedor.

As orações são incompreensíveis. Apesar da voz exaltada e do auxílio do microfone, é difícil entender o que é dito. E embora a reza seja indecifrável, todos, inclusive as crianças, se emocionam, choram. Como numa dança, pernas inquietas embalam o corpo de um lado para o outro, até que tudo fica em silêncio novamente. Os fiéis se mostram cansados, tristes. De repente, um homem de aproximadamente 60 anos chama Edson, que pergunta:

– Qual era o local da dor? Está se sentindo bem agora, não está? – O homem responde, mas o pastor se esquece de levar o microfone à sua boca.

– O braço estava doendo – diz o homem, que havia carregado materiais pesados durante o dia. Não satisfeito com apenas uma resposta, ou com um simples braço, Edson pede mais um depoimento, mas ninguém responde. O descarrego parece não ter funcionado muito bem. Com um olhar desapontado, de pálpebras semiabertas, o pastor encerra com uma oração, uma canção de louvor, e oferece mais uma vez o envelope do dízimo, envelope este que carrega o preço da fé.